A SAF, o torcedor e a eterna esperança

O futebol brasileiro descobriu a SAF como quem descobre a quinoa: empolgação de dieta nova, promessa de emagrecimento e a certeza de que agora tudo vai mudar. Trocam-se os estatutos, vendem-se as ações e celebram-se PowerPoints. Em tese, o clube vira empresa, atrai investidores internacionais e se livra da velha política de vestiário. Em tese. Na prática, vira uma espécie de franquia emocional com CNPJ estrangeiro.
O Botafogo, por exemplo, virou SAF e até ganhou a Libertadores no ano passado. Uma SAF de vitrine, diriam os mais otimistas. Mas o mesmo Botafogo já tinha liderado o Brasileirão por 31 rodadas e… entregado a taça. Agora está em sexto lugar, brigando com o Juventude por uma vaga na pré-Libertadores. E o investidor americano, John Textor, anda mais ocupado com inteligência artificial do que com lateral-esquerdo. Mas tudo bem, desde que pague os salários.
O Vasco também virou SAF. A diferença é que o Vasco virou SAF e… continuou o Vasco. Um pouco mais endividado, um pouco mais organizado e com um dono novo: um fundo americano que entende tanto de futebol quanto um argentino entende de Carnaval de escola de samba. Até abril deste ano, o Vasco apresentou superávit. Milagre? Não exatamente. Corte de gastos, venda de ativos e um bom contador. Mas ainda assim, a maior conquista segue sendo escapar do Z-4.
E o Cruzeiro? Vendeu a alma (e o Ronaldo) pra sair da Série B. Deu certo? Depende. Saiu da B, sim. Mas depois vendeu de novo a alma para outro investidor mineiro, como quem troca de fiador. O futebol, ali, virou um CPF de luxo com histórico de protesto no SPC.
Enquanto isso, Palmeiras e Flamengo — dois clubes que rejeitam a SAF com a elegância de quem não precisa parcelar no carnê — seguem ganhando campeonatos e sendo dois casos a parte. Estrutura associativa, conselhos ativos, gestões técnicas, Liderança forte e contas no azul. Pode ter a ajuda de investidor/gestor milionário, mas têm planejamento. E talvez isso seja mais raro que petrodólares no futebol sul-americano.
A pergunta, então, não é “virar SAF ou não virar SAF”. A pergunta real é: “Quem está no comando quando a SAF chega?” Porque a SAF é só um nome bonito pra dizer que agora o clube é uma empresa. E empresas, como sabemos, quebram. E quebram com eficiência. O futebol, porém, tem um problema: ele é irracional. Nenhum CEO do mundo entende o que significa vender o centroavante titular na véspera do Gre-Nal por uma “oportunidade de mercado”.
Do ponto de vista tributário, a SAF é um charme. Cinco por cento de imposto fixo por cinco anos, renegociação de dívidas, e a ilusão de que tudo se resolve com um contrato bem escrito. Mas o torcedor não é acionista. Ele quer título, camisa limpa e gol de falta. E não existe cláusula de performance pra emoção.
Os clubes associativos que deram certo têm uma coisa em comum: criaram cultura. Implantaram governança, pensaram em longo prazo, e resistiram à tentação de terceirizar a alma do clube por um aporte em dólar. Porque — e aqui vai o ponto — dinheiro é ótimo, mas não substitui identidade.
A SAF pode funcionar? Claro. Com visão, comando, transparência e sorte. Mas também pode virar uma empresa com marketing em inglês e time em 17º lugar. A diferença não está na sigla. Está nas pessoas.
No fim, o torcedor quer gritar gol sem precisar ler o balanço patrimonial. E talvez seja por isso que o futebol resista à lógica: ele ainda é uma das poucas coisas que não cabem numa planilha.
E o futebol, esse velho mágico de botinas gastas, continua ali no meio do campo, fazendo a torcida sonhar com ações ordinárias e gols extraordinários. Entre uma assembleia e um escanteio mal batido, o clube decide se vende o futuro ou se reforma a arquibancada com suor e fiado.
Porque, no fundo, o que o torcedor quer mesmo não é um investidor da Flórida — é um centroavante que saiba dominar a bola sem parecer que está devolvendo um presente indesejado. Quer uma diretoria que entenda que paixão não se amortiza em 36 vezes. Quer ganhar o domingo. E se possível, ganhar do Grêmio.
E se amanhã o clube virar SAF, Limited, ou até Futebol S.A. com filial nas Ilhas Cayman, tudo bem… Desde que, no domingo, às quatro da tarde, a bola role redonda, o rádio grite o gol, e a camisa vermelha pareça, mais uma vez, uma bandeira recém-lavada no varal da esperança.
Porque enquanto houver rede pra balançar, tem alma pra resistir. E enquanto houver um guri chutando tampinha na calçada, o futebol seguirá sendo o único negócio do mundo onde perder pode ser tragédia — mas ganhar… ah, ganhar é poesia.